Olá! Sabes o que são as regras do decoro, na tragédia grega? Algo em que pensamos muitas vezes. Nesses tempos que marcam a origem do teatro, o decoro obrigava a que as ações ditas violentas, como a morte de uma personagem, por exemplo, ou o momento em que o Rei Édipo se cega, se passassem fora de cena. Isto acontecia para evitar que o público assistisse aos atos que se acreditava ferirem a moral e os bons costumes, como o derramamento de sangue.
A palavra decoro - com o primeiro ó dito como se estando sob um acento circunflexo (decôro) - surge, hoje, associada a outros campos. Temos o decoro político, o decoro parlamentar, o decoro presidencial ou a ética jornalística, impedida de prejudicar o decoro de certa pessoa retratada. Quando começamos a frase anterior com o verbo “temos”, queremos dizer que esses decoros existem enquanto conceito, o que não significa que venham sendo cumpridos. Disso há exemplos recentes e em grande número. E, no teatro, como no resto, o decoro também se perdeu, em prol dos efeitos especiais, da diversão e, eventualmente, do ketchup.
O sangue está em todo o lado. “Marcas de Sangue”1, “Sangue”2, “Sangue na Guelra”3 e “Bodas de sangue”4 são nomes de espetáculos portugueses dos últimos 20 anos. Mas não só nos títulos. Também no elenco, como personagem quase principal, trazendo, cada vez mais, o imaginário dos filmes de terror para os palcos, como fizeram recentemente Mickaël d’Oliveira com “Crocodile Club” e Maria Inês Marques em “As Secretárias”.
E sim, esta newsletter é uma dissertação sobre sangue, fazendo honra à estreia do nosso primeiro espetáculo, Uma coisa de sangue, de Belisa Branças, dias 21 e 22 de março, no Auditório Municipal de Gaia.
A palavra sangue tem origem no latim “sanguis”, que teria possivelmente um significado próximo de “escorrer”. Adquiriu, entretanto, o significado mais evidente, referindo-se ao líquido vermelho, constituído de plasma e células, que circula nos vasos sanguíneos transportando oxigénio, mas também, de forma figurada, tornou-se sinónimo de “família” ou “geração”. Apesar de sermos fãs de molho de tomate, é precisamente assim que ele aparece em Uma coisa de sangue, como algo que se tem no sangue, na genética, através da herança familiar.
Mas há outras expressões curiosas, que usamos diariamente, sem pensar: veja-se o “sangue azul” para descrever a realeza, o “sangue frio” de alguém que tem presença de espírito ou, pelo contrário, o “sangue quente” de alguém muito impulsivo, o “sangue bom” das pessoas amigáveis e o “sangue nos olhos” característico dos que procuram vingança.
Na mitologia, começando pela grega, o sangue dos deuses continha ícor. Quando um deus sangrava, este ícor fazia com que o seu sangue, que passava a ser dourado, fosse venenoso para os mortais. No cristianismo, Jesus terá dado de beber um cálice com o seu sangue aos apóstolos, na última ceia: ato simbólico que se repete até aos dias de hoje nas missas católicas. Já as testemunhas de Jeová interpretam a Bíblia de forma diferente e proíbem as transfusões de sangue na sua doutrina.
E ainda há o sangue da menstruação, alvo das mais diversas crenças. Conforme os tempos e as culturas, as mulheres menstruadas são consideradas sujas e impedidas de entrar na cozinha, sob pena de contaminar os alimentos; proibidas de tomar banho para que o sangue não suba à cabeça; afastadas de qualquer ato sexual, porque o sangue queima a pele do pénis; e acusadas de bruxaria em que o sangue menstrual seria supostamente o ingrediente principal de poções para enlouquecer adultos e matar bebés.
O sangue é símbolo de vida e de morte, de fertilidade, de sacrifício, de crime. Circula entre os 35 e os 38 graus, correspondendo a cerca de 7% do corpo humano. O medo do sangue chama-se hematofobia; uma acumulação de sangue sob a pele é um hematoma; e o exame que avalia o número de células no sangue é um hemograma.
Para a Maratona, o sangue vai estar sempre associado ao nosso primeiro espetáculo. Dele fazem parte o sangue seco, o sangue a correr nas veias, o sangue que escorre no alcatrão e que, talvez, chegue ao centro da esfera onde ferve.
ISTO NÃO É UMA COMPETIÇÃO
Sabemos que a internet está cheia de sugestões culturais, de livros, filmes, séries e álbuns, mas achamos que o teatro e as artes performativas costumam, frequentemente, ficar fora dessas listas. E podemos até ser a Maratona, mas não temos vontade de competir. Neste segmento da nossa newsletter, recomendamos espetáculos dos nossos pares, artistas ou coletivos jovens, que vimos e de que gostámos ou que temos muita vontade de ver.
Hoje as recomendações vão além dos nossos pares, artistas jovens ou emergentes. Como não podia deixar de ser, vão ao encontro do sangue:
— o livro “Não é só sangue”, da Patrícia Lemos, sobre saúde menstrual;
— o filme “Sangue do meu sangue”, de João Canijo (2011);
— as canções “O sangue” de Benjamim e “Sangue” de Lucy Val;
— o poema “Sangre Joven” de Carlos Marzal
— dar sangue (descobre se podes, porque deves fazê-lo e onde)
— o nosso espetáculo Uma coisa de sangue, que estreia a 21 e 22 de março, no Auditório Municipal de Gaia e segue em digressão até outubro, por Lamego, Funchal, Lagos, Oeiras, Bragança e Serpa.
AGRADAR A GREGOS: MARATONA, TEATRO E… FILOSOFIA?
Já que unimos, através do nome que escolhemos dar à nossa associação, a Maratona ao Teatro, duas heranças da Antiga Grécia, porque não darmo-nos ao luxo de uma terceira? A filosofia, na sua origem, procurava explicar o mundo, dedicando-se - resumidamente - a pensar sobre ele. Neste segmento, assumindo as nossas vozes individuais, pensamos e escrevemos brevemente sobre temas que cruzaram os nossos mundos.
Fui-me encontrando ao longo da vida com a frase ‘’Fake it until you make it’’. Aliás, foram muitas as vezes em que ouvi alguém dizer essa frase, quase sempre em inglês. Hoje não sei se seria capaz de a pronunciar em português. E, no entanto, tanto numa como noutra língua, o seu significado é conhecido e, por norma, interpretado como algo positivo, pelo menos essa sempre fora a minha percepção. Hoje volto a esta expressão, ou ditado, por um lado por me rever nela e, por outro, por reparar no peso que a palavra ‘’fake’’ ganhou nos últimos anos. Facto que também me parece curioso. A ideia de que ‘’fingir’’ ou ‘’faking it’’ pode ser algo positivo no contexto, por exemplo, laboral parte do pressuposto de que o caminho para desenvolver ou adquirir determinadas competências ou capacidades, ou ‘’to make something happen’’, é penoso, moroso e até uma impossibilidade no atual mercado de trabalho, que é cada vez mais veloz. Efetivamente, uma pessoa tem de primeiro tentar, falhar, voltar a tentar para desenvolver competências e, no entanto, existe hoje pouquíssimo espaço, tempo ou oportunidade para que isso possa acontecer de forma natural. Ou seja, como não criamos contextos em que uma pessoa possa falhar, admitir os seus desconhecimentos, a sua inexperiência, o caminho para a sua integração passa - ou poderá passar - pela capacidade de convencer outras de que sabe sim fazer determinada tarefa, ou de que tem sim determinado conhecimento. Se por um lado existe um certo romantismo na ideia de que através do fingimento uma pode atingir os seus objetivos e ser-lhe dada a oportunidade de desenvolver determinadas competências, por outro, estamos ativamente a romantizar a farsa, a dissimulação, a mentira. O que me leva ao meu segundo ponto. Efetivamente, ‘’fake’’, fora do contexto desta expressão, ou ditado, é agora, e cada vez mais, associado a ideais como ‘’fake news’’ ou ‘’deepfake’’ que inundam as redes sociais, canais digitais e até canais de comunicação social. As potencialidades da AI elevam diariamente o conceito de ‘’fake’’ aplicada a cada vez mais contextos, formatos e plataformas. Se já houve um tempo em que ‘’faking it’’ estava associado à lei da atração, à capacidade de moldar a vida individual, hoje, está associado à crescente descrença nas notícias partilhadas e na disseminação de informação errada, aliás, falsa. E ainda assim, em momentos de aperto, de muito trabalho, penso nessa frase como um alento, como uma forma de proteção, como uma segurança. ‘’Se continuar a fingir ser capaz, serei capaz’’, pensamos coletivamente. Mesmo que isso nos leve ao burnout ou nos afaste da realidade. Talvez por isso as ‘’fake news’’ ou ‘’deepfakes’’ sejam também cada vez mais e mais impactantes, porque embora sejam falsas ou falsos, são apelativos, são de fácil consumo e mais convenientes do que ver, admitir e aceitar a verdade. No caso do ‘’faking it until you make it’’ seria admitir que não sabemos, embora queiramos saber fazer e, no caso das notícias falsas, seria procurar a verdade, aceitá-la e agir sobre ela, mesmo que isso dê mais trabalho e seja mais inconveniente para a nossa percepção do mundo.
Belisa
Para terminar, contar-te que estivemos duas semanas em trabalho no fAUNA, com o Teatro da Didascália, e que agora estamos no Cineteatro de Serpa, com o apoio da Baal17. Para leres sobre as nossas experiências de residência e saberes sempre por onde andamos, segue-nos no instagram.
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de Judy Upton, encenado por Isabel Medina e apresentado na Comuna, em 2005
de David Pereira Bastos, a partir de Shakespeare, em 2012
da Amarelo Silvestre, encenado por Rogério de Carvalho, em 2013
de Federico García Lorca, encenado por António Pires, no São Luiz em 2021
Não estou a acreditar que também dá para ouvir ♥️