As primeiras flores desta primavera foram cravos
A estreia de “Uma coisa de sangue” no Auditório Municipal de Gaia estava integrada nas Comemorações do 25 de abril e isso surpreendeu-nos. Até então, não tínhamos olhado para o espetáculo dessa forma. É claro que o sabíamos forte e convictamente político, provocador, consciente do mundo e da atualidade. Ainda assim, vê-lo de repente associado às celebrações desse dia inicial inteiro e limpo fez-nos saltar. Não nos interpretem mal, é obviamente um motivo de orgulho, mas é também uma responsabilidade.
E fez-se luz: o espetáculo versa sobre isso, afinal de contas. Sendo sobre liberdade individual e responsabilidade social, podemos dizer que os dois conceitos essenciais da pesquisa e do desenvolvimento da peça estão encarnados neste “Dia da Liberdade” apenas possível por um trabalho coletivo. Mais: num janeiro distante, começámos o primeiro dia de ensaios do projeto, que era o primeiro dia de trabalho oficial da Maratona, com cravos para toda a equipa presente. Não porque fosse tempo deles, mas porque os vemos como símbolo dos princípios através dos quais queremos conduzir a nossa associação. E na estreia, recebemos um ramo de flores no teatro, e eram cravos - vermelhos e brancos, como os do primeiro dia.
Sabemos que só temos o privilégio de fazer teatro em liberdade porque outras pessoas lutaram para que assim fosse, mas também sabemos que os direitos que conhecemos como certos facilmente nos podem ser retirados. Como mulheres, somos ainda mais frequentemente lembradas disso. Fazemos este espetáculo que fala de resistência, de guerra e de revolução sem pretensões de passar mensagens ou descobrir respostas. Fazemo-lo sobre os temas que nos desassossegam, para os pensar em conjunto. Fazemo-lo celebrando abril, mas não só.
No dia 9 de maio, “Uma coisa de sangue” estará em cena no Centro Cultural e de Investigação do Funchal, pela primeira vez tão longe de casa, pela primeira vez a trasportar o cenário de barco, pela primeira vez a fazer teatro rodeadas de mar. Calha bem porque se diz que o 25 de abril também só chegou à Madeira já em maio1. Apesar de Américo Tomás e Marcelo Caetano terem sido enviados sob prisão para o Funchal e de se saber o que tinha acontecido no continente, as instalações da PIDE mantinham-se em funcionamento, a censura continuou a operar e houve tentativas de impedir uma manifestação.
Neste mês em particular, abril também chega em maio ao país todo. Cinquenta anos depois das primeiras eleições livres em Portugal (a 25 de abril de 1975, elegeram-se os deputados da Assembleia Constituinte com uma afluência às urnas de 91%), vamos novamente a eleições legislativas no dia 18 de maio. Já que falamos do privilégio que outros construíram para nós e da retirada de direitos que tememos, falamos também do direito ao voto. Não há maior símbolo de liberdade individual ou de responsabilidade social do que esse.
ISTO NÃO É UMA COMPETIÇÃO
Sabemos que a internet está cheia de sugestões culturais, de livros, filmes, séries e álbuns, mas achamos que o teatro e as artes performativas costumam, frequentemente, ficar fora dessas listas. E podemos até ser a Maratona, mas não temos vontade de competir. Neste segmento da nossa newsletter, recomendamos espetáculos dos nossos pares, artistas ou coletivos jovens, que vimos e de que gostámos ou que temos muita vontade de ver.
Não é necessariamente artista jovem ou emergente, não está sequer fora das listas habituais, mas mantém-nos no tema. A Capicua vai dar um concerto na Avenida dos Aliados hoje, na noite de 24 de abril, para tocar as canções mais combativas da sua discografia. No single do novo álbum, “Making Teenage Ana Proud”, a promessa está feita: Por cada grunho, um punho, em sentido contrário
Por cada grunho, um voto, em sentido contrário
AGRADAR A GREGOS: MARATONA, TEATRO E… FILOSOFIA?
Já que unimos, através do nome que escolhemos dar à nossa associação, a Maratona ao Teatro, duas heranças da Antiga Grécia, porque não darmo-nos ao luxo de uma terceira? A filosofia, na sua origem, procurava explicar o mundo, dedicando-se - resumidamente - a pensar sobre ele. Neste segmento, assumindo as nossas vozes individuais, pensamos e escrevemos brevemente sobre temas que cruzaram os nossos mundos.
‘Saber viver!’ ou ‘saber levar a vida!’ eram coisas que a minha mãe dizia. Certamente não era a única, aliás, acredito que ainda haverá quem o diga. Afinal de contas, essa necessidade não deixou de existir. Talvez seja até mais importante agora do que alguma vez foi. Esse mote de vida ou ditado - se é que pode ser considerado tal - deixa-me inquieta e ‘tem muito que se lhe diga’, diria eu. Embora não devesse ser, e talvez para muitas nem seja, ‘saber viver’ parece-me algo matreiro, que não considera todas as pessoas, que considera que a vida é curta e não há tempo para ser tão altruísta assim. E talvez, como as coisas andam, não haja mesmo? Esta é a minha interpretação, claro, para as menos cínicas e mais otimistas, ‘saber viver’ pode significar precisamente o contrário: que para uma viver verdadeiramente bem, todas têm de ter essa oportunidade (real!). Gostava que assim fosse. A verdade é que a minha interpretação é influenciada pelos momentos em que a ouvi ser empregue, sempre em contextos em que alguém levava a vida de forma fácil ou facilitada e dito como uma crítica. Por outro lado, era igualmente algo a aspirar. ‘Aquela é que sabe viver a vida!’. Cresci na dúvida de se ‘saber viver a vida’ era gozá-la, no sentido de aproveitá-la com atividades lúdicas e sem associação económica e financeira, ou se era precisamente o contrário, apenas laborar e bem. Agora percebo que é ter possibilidade de escolha. Poder escolher como se quer levar a vida, isso é saber levá-la, vivê-la. Quem não puder escolher, vive igualmente, mas dificilmente a goza. Isso é reservado a poucas, às que podem - sem ter de pensar nisso - gozá-la como pretendem e às que descobrem formas de poder gozá-la… Estas são as chamadas exceções.
Belisa
Os bilhetes para “Uma coisa de sangue” no Centro Cultural e de Investigação do Funchal estão à venda. Se estiveres longe, partilha o link com os madeirenses da tua vida. Já temos o cenário em pleno oceano, não nos deixes afundar!